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Um outro vinho é possível?...Gostei e Repasso...


Um outro vinho é possível?

(Luís Henrique Zanini - Enólogo)
Estou letárgico, em frente a uma garrafa de vinho. Vejo seu rótulo... Tento decifrá-lo, suas linhas, sua cor, seus caracteres, sua forma... É belo, sim, tem cores, discreto, aristocrático, clean,.... tento elaborá-lo dentro de mim... mas não me emociona... O álcool em destaque: 14,5%. Sem chaptalização - é a mensagem no contra-rótulo, como se tudo estivesse aí. Aromas e sabores tentadores, de saladas de frutas com chantilly a chocolate com marshmallow. Há um número na garrafa (como se marcasse o gado). A qualidade está garantida! Debruço-me sobre ela e lentamente apunhalo a cortiça que veda este mistério (?), e, lentamente, giro este sem fim filosófico até transpassá-la e pronto, basta um golpe para abri-la, e assim eu faço. A rolha é marcada, é um brasão de família, remanescente da Europa, o sobrenome garante o pedigree. Da garrafa, desce agarrando-se nas paredes, um líquido de estado viscoso a pastoso, denso, quase um creme, na taça revela-se “é jovem está na cara”, mas a safra diz que não... brilhante, mas não transpassa a luz; no nariz, as especiarias, as especiarias, as especiarias, as frutas vermelhas, as frutas vermelhas, as frutas vermelhas.... Na boca o corpo (malhado), os taninos (siliconados), o álcool (turbinado), e, contraditoriamente, adoçando os lábios com beijos de mel, sem acidez (um bálsamo que suaviza as papilas). E o que causa ainda mais perplexidade está pronto para beber, evoluiu bem em um ano. Parabéns bebezinho!!! O bisnonno que só serviu para entrar na historinha da família se revira no caixão. Feitos com uvas limpíssimas, em desengaçadeiras limpíssimas, em prensas limpíssimas, em tanques limpíssimos, osmose reversa, barricas esterilizadas, engarrafados sem resquícios de leveduras nem bactérias (pasteurizado?). O vinho está sendo “fabricado” em “vinícolas-hospitais”! Ou o vinho está sendo “construído” por enólogos globalizados? Higiene é saúde, assepsia é doença, padronização é burrice!!! A era globalizada da estética fútil chegou aos vinhos... Do “vinhedo jardim” ao “rótulo subliminar” (cor, forma e estilo como fator de escolha), o vinho está sem “alma”! É um zumbi, perambulando em gôndolas promocionais de redes de supermercados! É um ente ausente de expressão, sem personalidade, é simplesmente mais um produto a ser despejado neste Parque de Diversão pérfido e implacável chamado Mercado. Num mundo que segrega, que condiciona comportamentos, instituiu-se a moda, e o “vinho construído” está na moda! “Elaborar um vinho” está cada vez mais longe de sua real etimologia. Há sim uma forte tendência em direção à padronização e à perda da identidade geográfica. Ao elegermos um vinho padrão, mercadologicamente viável, sacrificamos inevitavelmente sua origem e, de quebra, sua cultura! E o “como fazer”? E as mãos de quem trabalha? A tecnologia, em nome da facilitação da vida humana, desponta como um pesadelo; braços robóticos substituirão as mãos calejadas de viticultores, farão a poda e a colheita; e leveduras geneticamente modificadas transformarão qualquer uva em vinhos potencialmente “interessantes”! Não demandaremos de esforços para fazer um belo produto! E os nossos valores? Não importam. O status, o prazer, o poder, e, acima de tudo, o lucro, nos farão esquecer as primaveras chuvosas, os outonos gelados, o causticante verão, as lágrimas das safras perdidas. Vinho-arte, poesia, amor versus vinho-capital, commodity. A natureza não será mais “empecilho” para “fabricarmos” vinhos. O direito à liberdade concedido ao homem pelo próprio Criador perdeu o sentido. O homem do novo milênio se vê expulso do paraíso, desta vez pelo próprio homem! Que preço pagaremos pelo novo pecado original?
Foto: Márcia Toccafondo.